Monday, November 24, 2008

Acabavam de lhe fazer o curativo. O lacaio retirava com as compressas de fio ensaguentadas e as duas escudelas de porcelana da China cheias do pus que lhe espremiam das fístulas, quotidianamente, de manhã e à noite. Durava aquilo à três semanas e o homem, de natural anojadiço, habituara-se já à podridão. atrás dele foi o protomédico, Zamudio de Alfaro, e pelas pálpebras, mais cerradas ou tão dia´fanas que se deixavam penetrar da luz, ele próprio não saberia dizer, descortinou uma sombraque se deslocava para a direita e deveria se ro seu confessor padre Garcia de Loiasa, arcebispo de Toledo mal chegasse o breve de Roma. Fez-se silêncio e, embora silêncio artificial, com as úlceras aliviadas da sânie e os fogos do corpo apagados pela lavagem, gozou dum infinito e incomparável refrigério. que bom permanecer assim até resto, transpor em tão brando aniquilamento os umbrais da eternidade! mas uma chinela chapejou e não foi preciso mais para resvalar do delicioso nirvana em que se encontrava. Sentiu zumbir as moscas na atmosfera e o ligeiro frémito da mão do padre, armada dum lenço, a enxotar-lhas do rosto. A dor no joelho acordou; acordaram em seguida as dores nas articulações e a sede que trazia ateada nas entranhas como um incêndio; acordaram todas as feras enjauladas na sua carne e eram furiosas a mordê-lo e a dilacerá-lo. Aspirou o fedor que exalava a cloaca rota do seu corpo; experimentou o contacto do esterquilínio, suor de tísico, fezes, humores, piolhos e vermes em miríade, e caiu em si, na vera noção de quem era: Filipe II, rei de Castela e Aragão; rei de Portugal, de Nápoles e da Sicília; soberano dos Países Baixos; duque de Milão; senhor do Franco Condado; imperador do Novo Mundo...


in Aquilino Ribeiro "Aventura maravilhosa de D. Sebastião"



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